sábado, 20 de setembro de 2014

Oscar e Lucinda, de Peter Carey

Decidi ler este livro após ter visto o filme, do qual gostei muito. Gostei por causa da história em si, mas também por causa dos atores que retratam Oscar e Lucinda, que eu aprecio bastante: Ralph Fiennes e Cate Blanchett.

Oscar e Lucinda conta a história destas duas personagens, pela voz do bisneto de Oscar, 120 anos depois. O bisneto começa por contar alguns dados sobre a sua família mais próxima para depois passar a contar a história de Oscar e, depois, a de Lucinda.

Oscar, nascido em 1841, é um jovem solitário e introvertido, filho de um naturista e religioso da Ordem de Playmouth e de uma mulher muito bela e interessante, que vive em Hennacombe, Inglaterra. Depois de esta morrer, o pai de Oscar, Mr. Theophilus Hopkins vê-se a braços com a solidão e a tarefa de criar o filho sozinho. Sendo ele um bocado fanático em relação à sua religião e vendo todas as outras como perigosas e blasfemas, cedo começa a privar Oscar de muitas das coisas da Vida, como pudim de passas de Natal, que, a seu ver, é um produto do Mal. Quando Oscar, às escondidas do pai e com a ajuda das empregadas, come um bocado de pudim, percebe que a Vida podia muito ser muito mais interessante se pudesse fazer o que as outras pessoas das outras religiões fazem. Assim, começa a pensar a que outra religião cristã pode pertencer, através de um jogo adivinhatório com pedras e símbolos, acabando por lhe calhar como símbolo a Igreja Anglicana. Deste modo, Oscar abandona o seu lar e parte para casa do reverendo Stratton. Este influencia-se com o gosto do rapaz pela religião e principia-o nos preceitos anglicanos a fim de o enviar para Oriel para se tornar reverendo. Mais tarde, Oscar segue para Oriel e torna-se reverendo e viciado em jogos, principalmente em corridas de cavalos. Continua também a ser um “inadaptado” para a sociedade, um ser estranho e demasiado bondoso e esquisito (sendo esta a sua alcunha na faculdade).

Lucinda, também nascida em 1841, é uma jovem órfã que se vê a braços com uma fortuna bastante grande e sem saber como geri-la. Grande apreciadora de vidro, ao chegar a Sidney, vinda de Parramatta (também na Austrália), decide investir numa antiga fábrica de vidro, que estava à venda. Depois de se informar de quem a poderia ajudar, descobre o reverendo Hasset, também um apreciador de vidro, com o qual inicia uma amizade. No entanto, criada por um casal um tanto excêntrico para a época e para a região (a mãe era a favor do trabalho feminino e das fábricas da sua saudosa Londres e o pai era um amante a natureza e da bondade) e um tanto afastada das cidades, Lucinda descobre que os seus modos não são os mais “corretos” perante uma sociedade de gente empedernida e falsa. Sem mais do que dois ou três amigos, sozinha e jovem, começa a interessar-se pelos jogos, acabando por se viciar neles.
O destino de ambos cruza-se numa viagem de navio para a Austrália, quando Lucinda vem de um ano de estadia na Inglaterra e Oscar vai para a Austrália como penitência pelos seus vícios de jogador. Depois de se encontrarem e de se conhecerem, descobrem que os seus interesses são comuns e que a sua excentricidade e diferença em relação aos outros membros da sociedade pode muito bem ajudar a criar um laço bem grande entre ambos. Assim, tornam-se bons amigos.

Mais tarde, acabam por estabelecer entre eles uma aposta que tem tudo para mudar o curso das suas vidas.

Gostei bastante da história, das personagens, dos ambientes, das descrições e do sarcasmo e ironia presente ao longo de todo o enredo. Personagens distintas, ricas, complexas e que têm muito para oferecer ao leitor, fazendo com que este, durante a leitura, possa refletir sobre o que está a ler de uma forma mais ampla. Oscar é muito interessante, bem como Lucinda. São personagens que, mesmo que possam parecer excêntricas aos olhos das outras personagens, acabam por não o ser, sendo apenas “elas próprias” todo o tempo, estando sozinhas ou acompanhadas. Não têm vergonha dos seus comportamentos nem dos seus sentimentos e por isso são extremamente genuínas. É a sua genuinidade que leva Oscar e Lucinda a serem vistos como “estranhos, esquisitos e até depravados” por uma sociedade falsa, corrupta, assassina e maldosa, que esconde a sua maldade e velhacaria através de comportamentos e atitudes aparentemente corretos e moralmente aceites. Isso faz com que a história acabe por ser uma crítica bastante aguçada a esses comportamentos da sociedade, a essas falsidades que abundam por aí. É uma história intemporal por isso mesmo.

Depois, também gostei do sarcasmo com que o narrador aborda os temas contextualizadores da história, como a forma como certos assuntos, nomeadamente a religião, está presente na forma como as decisões dos mais diversos aspetos do dia-a-dia são tomadas. Não só a religião, como as “normas sociais”, o medo, a euforia, a falta de reflexão, a reflexão em excesso, o amor, o ciúme, as paixões, o desejo e o interesse pessoal. Por exemplo, Oscar está sempre a conter os seus sentimentos, os seus desejos, com medo de ser punido divinamente ou com medo do que lhe poderá acontecer se tomar alguma decisão mais brusca, sem reflexão prévia. Foi a sua educação que o fez assim (também em relação a Lucinda), o que também serve de crítica à forma como a educação molda o individuo. É essa contenção que provoca tudo o que acontece ao longo do enredo.

Outra crítica bastante presente é a forma como Lucinda é tratada num mundo de homens, por ser mulher. Dona de uma fábrica, bastante moderna em relação às convenções sociais, ela vê-se posta de lado pelos homens e pelas mulheres por querer ser ela mesma. Os operários não a aceitam na fábrica, pois pensam que ali não é lugar para mulheres. No entanto, ela é uma excelente gerente e quando ela não está presente, o negócio, tomado nas mãos dos seus amigos homens acaba por quase definhar. Pode-se ver-se que o autor explora aqui a forma como a mulher se tenta afirmar numa sociedade masculina, como é posta de parte tendo mais capacidades do que eles, pois é uma afronta por causa da sua inteligência, da sua intelectualidade e conhecimentos.

No entanto, houve um aspeto que não me agradou muito. Compreendo a originalidade na escolha do autor, mas acho que isso não beneficiou grandemente o enredo. Refiro-me à sequência narrativa. O narrador, ao contar a história, vai acrescentando informações por vezes bastante diversas daquilo que estava a contar, apesar de serem relevantes para os acontecimentos. Isso faz com que a narração, por vezes, se disperse um pouco e haja alguma falta de coerência. Também levou a que, a meu ver, a história tivesse um começo bastante mais completo do que a parte final, que acabou por ser um tanto rápida e mais coerente. A parte mais final (a partir, mais ou menos, das páginas 300) acabou por ser mais coerente e linear do que o início da narrativa. Fiquei a pensar que, se toda a história tivesse sido assim, teria sido mais interessante, mais coesa e direta.

O que acabei de referir não faz com que o livro deixe de ser uma excelente história. Muito bonita, um tanto trágica e bem melancólica. É final que fica na memória e que deixa um sensação de vazio, que marca o leitor e o deixa a pensar que tudo poderia ter sido diferente se as atitudes das personagens tivessem sido outras, se … se… aquela palavra que revela um ato que poderia ter sido e que não foi, ou que foi e poderia não ter sido.

Fico com a sensação que gostei mais do filme. O final está ligeiramente alterado, mas a alteração que fizeram no filme vai mais ao encontro ao meu gosto e é por isso que fico com esta sensação. Os atores estão perfeitos e representaram na perfeição as personagens, transmitindo todo seu carisma e pujança. Tanto Ralph Fiennes como Cate Blanchett fizeram um brilhante trabalho. Aconselho vivamente a que vejam o filme, pois é muito bom e bonito, tanto visualmente como a nível da beleza da história; aquela beleza inerente que aparece nas pequenas coisas. 


Também aconselho a leitura do livro, claro. Muito bom! 

Citações:

Ao fundo da grandiosa escada escorregadia que levava ao convés superior, abandonou silenciosamente a ruidosa companhia e sentiu-se como uma criatura triste e feia num conto de fadas, para sempre exilada da luz e compelida a ocultar-se, pálida e de olhos arregalados, reluzente de suor nas escuras regiões de aço das profundezas. p.260 


NOTA (0 a 10): 9

4 comentários:

  1. Olá,

    Bem parece que estamos na presença de um excelente livro, gostei muito do teu comentário :)

    Raros são os filmes que são melhores que os filmes mas por vezes acontece :D

    Bjs

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    1. Olá Fiacha,

      é um excelente livro, sem dúvida. Bastante original e pode-se estranhar um bocadinho, mas depois entranha-se =)
      Obrigada!

      Mesmo. Aqui está um caso em que eu gostei mais do filme, por causa do final ;)

      Bjs

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  2. Tenho-o na estante mas, como adoro o filme tenho receio de o ler...

    Beijinhos*

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    1. Olá Jojo,

      aposta nele! Mesmo que acabes por ficar com a mesma ideia de mim, vale a pena.

      Beijinhos!

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