The
Gospel of Loki é o terceiro livro da autora Joanne Harris que tem como
contexto a mitologia nórdica. Depois de ler A Marca das Runas e A Luz
das Runas, não podia deixar de querer ler este!

Neste livro,
Loki é o narrador e é ele que conta a sua história e a do começo dos
mundos até ao Ragnarok, tendo em conta o seu ponto de vista. Com uma
linguagem muito fluída, irónica e bastante sentida, Loki vai contando a
sua história, à qual chama de Gospel of Loki (traduzido livremente por
mim como O Hino de Loki, ou algo do género). É como que uma explicação
pelo que fez durante a sua estadia em Asgard.
No início, Loki
começa por introduzir o contexto da sua narrativa, explicando como
começaram os mundos de acordo com a História: o Caos (fogo) entrou na
Ordem (gelo) por meio de erupções subterrâneas que derivaram na
existência de vida (temperaturas tépidas na superfície gelada geraram
vida). Vida essa que teve como primeiro ser um gigante de nome Ymir e
depois uma vaca (Audhumbla), que quando lambeu o gelo pôs a descoberto o
primeiro Aesir, Buri. Buri foi pai de Bor que foi pai de Odin, Vili e
Ve. Estes três acabaram por matar o gigante Ymir e, dele, fizeram os
elementos dos mundos (o sangue deu origem ao mar, a carne deu origem à
terra, o cabelo deu origem à vegetação, o cérebro deu origem às nuvens e
o crânio deu origem ao céu). Depois de várias batalhas pela conquista
dos mundos, acabou por se chegar à conclusão de repartir as terras pelas
diferentes raças, que entretanto apareceram: povo do gelo, povo das
rochas, humanos, Vanir, bruxas, feiticeiros, monstros. Os Vanir,
nascidos de ligações entre os do Caos e os humanos, acabaram por ganhar
mais magia do que os Aesir, uma vez que a magia era um dos poderes do
Caos. E com a magia, vieram as Runas, que Odin acabou por cobiçar.
Gullveig-Heid,
representante dos Vanir e uma das mais poderosas, foi até Asgard para
negociar, mas os Aesir tentaram matá-la por três vezes no fogo, ao que
ela conseguiu renascer e fugir, incentivando o seu povo e outros povos à
guerra contra os Aesir. A guerra alastrou-se, até que Odin tentou mais
um esquema: trocar reféns com os Vanir. Mandou-lhes Mimir e Honir e em
troca ficou com Njord e os seus filhos (Frey e Freyja), na medida que os
dois Aesir contribuíssem com ensinamentos de estratégia de guerra e os
três Vanir contribuíssem com ensinamentos das runas. No entanto, Mímir e
Honir tinham um esquema para dar informações falsas, o que levou à
decapitação de Mímir, cuja cabeça voltou para Asgard com Honir. Odin
acabou por preservar a cabeça com runas e transformou-a num oráculo, que
guardou para si. Tempos depois, com novas ameaças dos povos do gelo e
das rochas, os Aesir e os Vanir acabaram por se juntar em Asgard e, no
final da guerra, uniram-se.
Com o tempo, Odin acabou por
compreender que o que lhe fazia falta era alguém que fizesse os
“trabalhos sujos” que ajudariam os Aesir a continuar no poder e depois
de muito procurar (com a ajuda dos seus dois corvos Munin e Hugin),
acabou por encontrar Loki, ainda na forma de Fogo Selvagem, um filho do
Caos, filho de Laufey (uma chama) e de um monte de paus.
Loki,
curioso por natureza, também andava à procurar de Odin. Andava à procura
dos Aesir e dos Vanir através do Sonho, para descobrir quem é que
andava a usar as runas e a magia, um dom do seu povo. Sonhava também ser
livre, algo que não era no Caos, sempre subjugado por Surt, o Senhor do
Caos. Assim, nas margens do rio de Sonho, Loki e Odin encontraram-se,
este chamando pelos nomes de Loki de modo a trazê-lo para o seu lado.
Loki mudou para o aspeto humano e acabou por se deixar seduzir pelo
pedido de Odin: Loki seria um dos deuses, moraria em Asgard, seria
estimado e bem tratado, estaria sob proteção de Odin, que seria seu
irmão de sangue, trabalharia para Odin e não mais poderia regressar ao
Caos. Para isso, como marca de aliança, marcou-o com a runa Kaen (runa
do fogo) e levou-o para Asgard. Lá, Loki só encontrou ódio e rancor por
parte dos outros Aesir e Vanir, exceto Idun (que não tinha sentimentos
negativos por ninguém) e Sygin (que se apaixonou por ele).
A
partir daí, Loki conta como foi a sua vida no meio dos deuses, como se
deixou encantar e deslumbrar, como acabou por encontrar nada mais do que
traição e ódio, como se tornou mais humano do que criatura do Caos,
como se sentiu envolto em sentimentos e sentidos que o atormentaram,
como encontrou algo parecido com Amor, com família, com amizade, e como
acabou por perder tudo, restando-lhe apenas a vingança como arma contra
aqueles que o acolheram com sentimentos de raiva e medo, contra aqueles
que poderiam ter sido a sua família e que acabaram por se revelaram nada
mais do que carrascos. Assim, Loki vai narrando a sua história e como
esta se entrelaça com a história dos mundos, com o seu inícios e os seus
finais.
Gostei muito do livro, mais do que dos outros dois.
Apesar de gostar imenso de A Marca das Runas e de A Luz das Runas, The
Gospel of Loki, ultrapassa-os, na minha perspetiva. Isto porque: tem o
Loki como narrador e suprema personagem principal (ele é o meu favorito
destes livros); tem uma linguagem mais adulta, mais assertiva, mais
irónica; tem como cenário Asgard e outros locais míticos; os deuses
estão mais presentes; existem momentos de pura melancolia e até bastante
tristes, que estão muito bem doseados com momentos de puro riso; é uma
boa forma de ficar a conhecer melhor a mitologia nórdica e, em especial,
Loki e o seu papel nesta.
Uma vez que, já nos outros livros,
Loki tinha-se revelado um eixo fundamental e um pilar de estruturação da
história, isso é exponenciado aqui, sendo o narrador e a personagem
principal. Também é possível, ao ler nas entrelinhas, descortinar o
papel que ele teve em todos os momentos, especialmente nos momentos
finais, que servem de ligação para alguns dos acontecimentos dos outros
dois livros, principalmente do primeiro. Este livro é como que a base
para tudo o que se desenvolve nos seguintes, porém, não significa que
seja mais interessante lê-lo antes dos outros. Mesmo porque a ordem de
escrita foi: A Marca das Runas, A Luz das Runas, The Gospel of Loki.
Este livro é como que a chave para algumas pontas desatadas de algumas
partes dos enredos dos outros dois livros, ou pelo menos para quem não é
tão conhecedor da mitologia nórdica. Porque sim, o livro é uma espécie
de reconto de alguns episódios desta mitologia, mas a forma como é
narrado é soberba.
Mais uma vez, Joanne Harris volta a encantar
com a forma como desenvolveu mais um capítulo desta história com base
nos mitos nórdicos. Para mim, este supera os outros dois. E é pena que,
em princípio, seja um standalone, dada a forma como terminou. Por falar
nisso, esta é a prova que é possível escrever histórias boas, com um
enredo rico, complexo, fantástico, sem ser necessário recorrer a vários
livros. Neste pequeno livro (cerca de 300 páginas), acontecem mais
episódios do que em qualquer dos outros dois livros passados neste
contexto.
Não podia deixar de mencionar outro facto que muito me
agradou: a final do livro. Ao longo do livro, o narrador vai-nos dando
pistas sobre o final (e todos os que leram os outros dois livros, ou
apenas um, ou que conhecem alguns episódios desta mitologia) e eu já
sabia o final, pelo menos, a parte mais visível do final. Porém, a
mestria com que ele narra a história, a forma como ele utiliza as
palavras e as usa para criar os significados subtis que pretende mostrar
ao leitor, faz com que o final seja muito mais do que aquilo que se
estava à espera. Este é, simplesmente, brilhante, bem como em certa
medida, bastante triste. Como referi à pouco, existem momentos de puro
riso porque a forma como ele narra e alguns dos episódios que são
narrados, permitem que o leitor dê várias gargalhadas. No entanto, Loki
mostra ser um ser que também é capaz de refletir, de sentir, de se
angustiar e sofrer, de tal modo e de tal forma que faz com que certos
momentos do livro se tornam bastante melancólicos. Refiro-me em especial
aos momentos com os filhos dele e àqueles em que ele é traído.
É
uma história mais adulta do que as dos outros livros. Existem diversas
batalhas, com excelentes descrições que me fizeram imaginar lá dentro, o
que é muito bom. Existe ação, drama, alegria, amor, magia (muita
magia), intriga e dualidade. Estão presentes todos os ingredientes que
promovem uma boa história, com um enredo forte e perfeito. Existe um
excelente equilíbrio destes ao longo da narrativa. As personagens estão
excelentes, muito diferentes umas das outras, muito bem caracterizadas e
definidas. Todas elas têm o seu papel determinante para o global da
história. Nada aparece por acaso e tudo o que é narrado é
importante…tudo está ligado. E essas ligações são bastante expostas pelo
narrador, que, enquanto narra a sua história, faz também uma reflexão
sobre a sua vida, sobre as suas escolhas e sobre tudo o que poderia ter
tido ou feito, pesando todo o seu passado em busca de uma espécie de
redenção. Não há apenas um lado nele, não há apenas maldade ou gosto por
enganar, por trair. Não. Esta história dá a conhecer um Loki muito mais
complexo, um Loki que sempre foi mal-entendido pelos seus pares, que
não foi aceite e que por isso se viu votado ao abandono e sem ninguém.
E, no fundo, o que ele mais queria era alguém. Da sua maneira, mas
alguém.
Um livro maravilhoso. Ainda não está traduzido
para português, mas penso que alguma editora (a ASA, talvez…uma vez que
traduziu os outros dois) o irá fazer. Espero que leiam e que gostem
tanto como eu gostei. Recomendo a todos.
Podem encontrar mais informações no site da autora, aqui.
Algumas citações:
Words, like names, are powerful things. Once given, there's no taking them back without risking serious consequences. p. 235
Or was this the scenario she'd always secretly wanted - to have me to herself for good, helpless and in her power?
"I brought some fruitcake for later," she said "If you like I'll cut you a slice."
"Cake," I said. "You brought cake?" p. 243
History spins its yarn, breaks threads, spins again, like a child's
top, going back to the beginning. The Oracle knew that. That's what
those last stanzas mean; a new world, rising from the ruins of the old.
p. 294
NOTA (0 a 10): 10